sexta-feira, setembro 29, 2006

TARDE DE CHUVA

Cai uma chuva fria, miudinha ;
E o céu de chumbo, enerva-me, entristece,
Não se vê sol nem asa de andorinha,
E o vento a murmurar reza uma prece.

A-dentro de alma a fantasia tece
Um tédio que amolenta e me definha ;
E a luz em derredor baixa, decresce,
Dando a impressão que a noite se avizinha.

Neste momento, eu sei, tu desesperas,
Olhando para o céu, como eu também !
_ Irei ou não irei ? __Em vão esperas:

A chuva continua. São três horas ...
Calculo a tua angústia ! __Já não vem __
Dizes baixinho ; e, olhando a rua, choras !


Alberto de Aragão

quinta-feira, setembro 28, 2006

ANTONIO SERRÃO DE CASTRO


Onze vezes de folhas revestida,
Onze vezes de flores adornada,
Onze vezes de fruto carregada
Te vi, ameixieira, aqui nascida.

Outras tantas também te vi despida,
De folhas, flores, frutos despojada,
Pelo rigor do Inverno saqueada,
E a seco tronco toda reduzida.

Também a mim me vi já revestido
De folhas, flores, frutos adornado,
De amigos e parentes assistido.

De todas eis-me aqui tão desprezado;
Mas tu voltas a ter o que hás perdido,
E eu não terei já mais o antigo estado.

António Serrão de Castro
1610_1684
Para se compreender este poema há que saber um pouco sobre António Serrão de Castro. Levantando um pouco do véu, direi que foi escrito na prisão, e que o poeta foi condenado pelos Inquisidores, Ordinários e Deputados da Santa Inquisição, desprezadas as cínicas instâncias do Santo Ofício.

domingo, setembro 24, 2006

RISO

Tive o geito de rir, quando menino,
Até beber as lágrimas choradas:
Com carantonhas, gestos, desatino,
Passou a nuvem eos pequenos nadas.

A rir de escuridões, de encruzilhadas,
Tornei-me afeito logo em pequenino;
Porque ri é que trago as mãos geladas,
E choro porque ri do meu destino.

Vivi de mais num mundo idealizado
Comigo só: E só de mim descreio.
Entornava-me riso a luz em cheio

Quando o meu mundo foi principiado;
Rio agora que não sei donde me veio
Sempre o mal que me trouxe o bem sonhado.

Afonso Duarte
N 01-01-1886 __ F. 05-03-1968


terça-feira, setembro 19, 2006

O QUE É UM BEIJO


O QUE É UM BEIJO

Se os beijos tem veneno,
se há beijos homicidas,
quisera ter cem vidas
e vezes cem morrer.

Thomaz Ribeiro.__D. Jayme.

Um beijo dá-nos a beber docuras,
um beijo alívios antepõe à dor;
um beijo é gozo, quando assoma aos lábios,
um beijo... um beijo só é dado a amor !

Um beijo aviva as esperanças mortas,
acalma as dores, que o sofrer nos faz;
um beijo alenta o coração descrido;
é dom dos anjos, é ventura, é paz !

Um beijo ilude, se a sorrir-nos triste
vem a saudade d'um passado bom;
um beijo exalça nossa mente às nuvens,
após um ai... um suspirado som.

Um beijo é doce, se os protestos marca...
de ternas falas se precede o fim;
um beijo é doce, se, pedido e aceito,
nos cai dos lábios, que nos dizem __ sim.

Um beijo alegra, se, escondido e a furto,
relembra instantes d'um sonhar feliz;
um beijo nutre aspirações ferventes,
segredos d'alma muita vez nos diz.

Um beijo é paga dos martírios leves,
que amante e amada se propõem sofrer;
Um beijo é prémio dos afectos puros,
que as almas cândidas só sabem ter.

Um beijo, impresso sobre mãos de neve,
desejos tímidos revela assaz;
um beijo as faces colorindo... encanta,
aos lábios trémulos perfumes traz.

Um beijo sôfrego, com ar de riso,
é facho mago de esmaltada luz !
um beijo sôfrego inebria, e cega !
inspira ! enleva ! ainda mais... seduz !

Um beijo é cofre de doçura infinda !
um beijo é calma, que suaviza a dor !
um beijo é gozo, quando vem do peito !
um beijo é fruto da expansão do amor !

22 de Julho de 1868
David Correia SANCHES DE FRIAS
N. 02-10-1845 _ F. 18-03-1922


quinta-feira, setembro 14, 2006

ANTÓNIO NOBRE


Em certo Reino, à esquina do Planeta,
Onde nasceram meus Avós, meus Pais,
Há quatro lustres, viu a luz um poeta
Que melhor fora não a ver jamais.

Mal despontava para a vida inquieta,
Logo ao nascer, mataram-lhe os ideais,
À falsa-fé, numa traição abjecta,
Como os bandidos nas estradas reais !

E, embora eu seja descendente, um ramo
Dessa árvore de Heróis que, entre perigos
E guerras se esforçaram pelo Ideal :

Nada me importa, País ! seja meu Amo
O Carlos, ou o Zé da T'resa... Amigos,
Que desgraça nascer em Portugal !

António Nobre
N. 16-8-1867 _ F. 18-01-1900

poema escrito em: Coimbra, 1889

http://bnd.bn.pt/ed/eca_queiros/biobibliografia/1888-1900longo.html


sábado, setembro 09, 2006

LEGENDA DOS DIAS

O Homem desperta e sai cada alvorada
Para o acaso das cousas... e, à saída,
Leva uma crença vaga, indefinida,
De achar o Ideal nalguma encruzilhada...

As horas morrem sobre as as horas... Nada !
E ao Poente, o Homem, com a sombra recolhida,
Volta, pensando: «Se o Ideal da Vida
Não veio hoje, virá na outra jornada...»

Ontem, hoje, amanhã, depois e, assim,
Mais ele avança, mais distante é o fim,
Mais se afasta o horizonte pela esfera ;

E a Vida passa... efémera e vazia :
Um adiamento eterno que se espera,
Numa eterna esperança que se adia.


Raul de Leoni
N. 30-10-1895 / F. 21-11-1926

sexta-feira, setembro 01, 2006

GOMES LEAL


I
(Lápide para colocar no largo onde o
grande poeta Gomes Leal foi apedrejado
pelos garotos de Lisboa)

Aqui,
onde passaram rodas e enterros,
olhos e ventos...
(E urinaram os perros
nos excrementos...)

Aqui,
onde a mesma andorinha
repete há séculos a mesma primavera de realejo...
(E cai uma chuva miudinha
nas manhãs de bocejo...)

Aqui,
onde os trens e as bestas
arrancaram estrelas com os cascos...

Foi aqui
que tombou o Príncipe das Horas Funestas
num suor de chascos.

Sim, foi aqui que te viram rolar na sarjeta,
apedrejado na alma pelos garotos.
(A chorar, a chorar, com alegria secreta
dos anjos bebados nos esgotos.)

E a tua sombra ficou para sempre no chão,
incrívelmente branca,
que nenhum espectro, nenhum vento, nenhum braço sem mão
apaga ou arranca.

Impregnou-se de lágrimas no solo
e aqui ficou na pedra onde caíste
__tu, poeta, que trazias no olhar meninos ao colo
e na voz um fantasma de lança em riste.

Tu que foste católico, jacobino e ateu
só para enfeitar de lua e bebedeiras
o teu instinto de querer rasgar o Véu
que esconde nas rosas as caveiras.

Ah! esse Véu, esse Véu maldito,
que todos os poetas, mesmo sem pensarem nele,
sentem na imprecisão de cada grito
e no calafrio da pele.

Esse Véu, esse Véu que o tédio solda
às mãos, à cara e às fazendas...
E pouco a pouco nos amolda
a este mundo de cárcere sem fendas.

Mas tu não te resignaste e quiseste rompê-lo
de pé, de joelhos, de bruços,
com lágrimas de cutelo
e punhais de soluços.

Tudo em vão, poeta tudo em vão !
Ninguém pode talvez rasgar este Véu maldito que oculta e desvenda
o esqueleto de silêncio em fogo que nos ilumina !

A cada rasgão,
a cada nova senda,
aberta às unhadas na solidão,
sobe sempre do chão
mais neblina
num sufocar de vala
na escuridão...

E depois outra cortina !
Sempre outra cortina !

(Eh ! Poetas: vamos nós rasgá-la ?)



II

(Grito de Gomes Leal no céu:)

«Cansado de dormir no basalto,
morri e meteram-me numa nuvem de elevador.
E agora cá estou no céu alto
com uma estrela ao peito em vez de flor.

Mas qualquer dia dou um salto.
(Ou peço a um anjo que me transporte
para não quebrar as pernas.)

Estou farto de céu e quero mundo ! Quero morte !
Quero dor ! Quero tabernas !»

José Gomes Ferreira
N 9.7.1900 F 8.2.1984