sexta-feira, janeiro 30, 2009

O INFINITO

Aonde o corpo não vai _ projecta-se o olhar;
Onde pára o olhar _ prossegue o pensamento;
Assim, n'esse constante, eterno caminhar,
Ascendemos do pó, momento por momento.

Muito além da atmosfera e além do firmamento
Onde os astros, os sóis, não cessam de girar,
Há de certo mais vida e muito mais alento
Do que nesta prisão mefítica, sem ar...

Pois bem! se não me é dado, em vigoroso adejo,
Subir, subir... subir _ aos mundos, que não vejo,
Porém que um não sei quê me diz que inda hei-de ver,

_Quero despedaçar os élos da matéria:
Perder-me pelo azul da vastidão etérea...
E ser o que só é quem já deixou de ser!


Mucio Teixeira

http://pt.wikipedia.org/wiki/Múcio_Teixeira

domingo, janeiro 25, 2009

PÁGINA DE FUMO

Corpo é matéria, um todo limitado.
O quebra luz. A porta do aposento.
O vaso e a planta verde de ornamento.
A pena com que escrevo. O livro ao lado.

O gato sonolento anovelado ...
A almofada fofa. O fogão lento.
Familiar cadeira em que me sento.
A mão obediente ao meu mandato ...

Tudo o espaço contém, tudo limita.
A página de fumo onde está escrita
A minha dor sem trégua ao sofrimento,

De nada limitada ou circunscrita,
Só ela é incontível, infinita,
_Voz silenciosa ao meu cruel lamento.

Maria Antonieta Fernandes


publicado no CORREIO DO RIBATEJO nº 5151,
de 5/01/1990, página oito

sábado, janeiro 24, 2009

SOU QUEM TE QUER...

Eu sou uma intrusa na vida,
A mais pequena unidade de medida.
Sou a que vive por viver,
Aquela que chora sem se ver.

Eu sou a lágrima de um olhar,
A mágoa do verbo amar.
Sou a que luta e nunca vence,
A palavra suplicante de uma prece.

Eu sou quem ama sem ser amada,
Mais um sinónimo de "nada".
Sou quem sorri só com a boca,
Quem se finge surda e faz de louca.

Eu sou o vento que voa sem destino,
O choro nos olhos de um menino.
Eu sou segredo que ninguém conhece,
Tormento que ninguém merece.

Sou dor de chama que flameja
E se abafa para que ninguém a veja.
Eu sou alma velha, nua,
Sombra que, à noite, cobre a Lua.

Sou quem te quer com pouca sorte,
E ainda mais te amará depois da morte...

Juliana Belo

sexta-feira, janeiro 23, 2009

ANTONIO RAMOS ROSA

AQUI MEREÇO-TE

O sabor do pão e da terra
e uma luva de orvalho na mão ligeira.
A flor fresca que respiro é branca.
E corto o ar como um pão enquanto caminho entre searas.
Pertenço em cada movimento a esta terra.
O meu suor tem o gosto das ervas e das pedras.
Sorvo o silêncio visível entre as árvores.
E aqui e agora o dilatado abraço das raízes claras do sono.
Sob as pálperas transparentes deste dia
o ar é o suspiro dos próprios lábios.
Amar aqui é amar no mar,
mas com a resistência das paredes da terra.

A mão flui liberta tão livre como o olhar.
Aqui posso estar seguro e leve no silêncio
entre calmas formas, matérias densas, raízes lentas,
ao fogo esparso que alastra ao horizonte.
No meu corpo acende-se uma pequena lâmpada.
Tudo o que eu disser são os lábios da terra,
o leve martelar das línguas de água,
as feridas da seiva, o estalar das crostas,
o murmúrio do ar e do fogo sobre a terra,
o incessante elemento que percorre o meu corpo.
Aqui no grande olhar eu vejo e anuncio
as claras ervas, as pedras vivas, os pequenos animais,
os alimentos puros,
as espessas e nutritivas paredes do sono,
o teu corpo com todo o vagar de sua massa,
todo o peso das coisas e a ligeireza do ar.
Ao flexível volante trabalhado pelas seivas
a minha mão alia-se: bom dia, horizonte.

Uma saúde nova vai nascer destes ombros.
A lâmpada respira ao ritmo da terra.
Sei os caminhos de água pelas veredas,
as mãos de ervas finas embriagadas de ar,
o silêncio donde se ergue a torre do canto.

Abrem-se os novos lábios e eu mereço-te.
É este o reino de insectos e de jogos,
das carícias que sabem a uma sede feliz.
Aqui entre o poço e o muro,
neste pequeno espaço de pedra cai um silêncio antigo:
uma infância inextinguível se alimenta
de uma fábula que renasce em todas as idades.
É aqui, minha filha, que dança a fada do ar
com seu brilho sedoso de erva fina
e a sua abelha silenciosa sobre a fronte.
É aqui o eterno recanto onde a água diz
a pura praia da infância.
Aqui bebe e bebe longamente
o hábito da tristeza no silêncio da vida,
aqui, ó pátria de água calada e de pão doce,
da fundura do tempo, da lonjura permanente,
aqui, bom dia, minha filha.

António Ramos Rosa


http://pt.wikipedia.org/wiki/António_Ramos_Rosa

sexta-feira, janeiro 16, 2009

SÁTIRA A UMA SOC......

SÁTIRA A UMA SOCIEDADE BURGUESA

Deixem-me rir a bom rir
Só assim me posso ir...!

Pátria, Família, Religião
São valores da burguesia
Que impõe a sua razão
Numa espécie de asfixia...!
O soldado a marchar
Às ordens dum general
A família a crescer
Toda no mesmo ideal
O padre a benzer
O próprio pecado original...!

Sempre a querer mandar
Está o marido machista
Fatigado, suave, sussurrante
(Tudo para disfarçar...)
Que no seu próprio lar
Vai ditando a tirania
Da mulher tudo fazer
Desde o coser ao lavar
Passando até pelo amar...!

Deixem-me rir a bom rir
Só assim me posso ir...!

Se o doente tem dinheiro
E está disposto a pagar
Então será o primeiro
No consultório a entrart,
Enquanto no hospital
No sector da urgência
Que nos valha a paciência...!

De fato escuro e gravata
Em direito formado
Ele não ata nem desata
Aquele processo intrincado,
É tanta e tal papelada
A confundir o pensar...,
Entretanto no banco dos réus
(Detidos sem culpa formada)
Passa a revolta calada.

Deixem-me rir a bom rir
Só assim me posso ir...!

Até que...
O juíz no tribunal
Com ar compenetrado
Lê a sentença final
Ao arguido já saturado
Por julgamentos sucessivos
Que se arrastam inconclusivos...,
Enquanto ele inocente
Espera impaciente

Entre grades de prisões
A última das decisões.
Há médicos, sapateiros
Operários, escritores
Ministros, serralheiros
Arquitectos, actores
Professores, engenheiros
Oprimidos e opressores...,
Estão todos misturados
Mas sem que haja igualdade
E convivem aleijados
Nesta mesma sociedade
Onde cresce o capitalismo
Aumentando a pobreza
Tenho disto a certeza.

Deixem-me rir a bom rir
Só assim me posso ir...!

Lá está em cena o burguês
Fingindo-se trabalhador
Vai chegar a sua vez
De se tornar ditador.
Esse burguês astucioso
É o pior, o mais perigoso
Só lhe interessa vencer
Para alcançar o poder.
Tantos homens sem escrúpulos
Continuam a proliferar
Porque afogada em crepúsculos
Anda a vontade de os derrotar.

Deixem-me desta vez chorar...!
Sinto-me inválida para apagar
O fogo que está a arder
Com perigo de alastrar
Se depressa não chover.
Sociedade burguesa
Ironia do destino
Não me ponhas mais a mesa
Não me dês mais desse vinho
Denuncio-te a escrever
Sem que me vença o cansaço
Faço da minha poesia
Uma espada de aço...!

Deixem-me rir a bom rir
Que o meu riso é de escárnio...
E de nojo... e de repulsa...
O meu riso satiriza
Com crescente zombaria
Toda e qualquer burguesia
Deixem-me rir a bom rir
Só assim me posso vir
Em orgasmo contrafeito
A apunhalar o peito...!

Ana Trigal

sábado, janeiro 03, 2009

EL INTERROGATORIO

No pude resistir
o interrogatorio.
La fría sapiencia
del interrogador
y la debilidad
del interrogado,
hicieron fácil la tarea.
La picana y las tenazas
habían trabajado
con profesionalidad
casi perfecta.
En el lóbrego calabozo
estaba terminando
de escribirse una historia,
una más de esos seres
desgraciados que
caminaron por esta
América nuestra,
en aquellos siniestros
años.


Fernando Giucich

quinta-feira, janeiro 01, 2009

BALADA DOS MESES


Janeiro chega, principia o ano
E Fevereiro dá-lhe seguimento!
Vem depois Março e o prometimento
da Primavera, com dias de engano.

Abril e Maio dão ao ser humano
Festas e flores, dum real contento!
Em Junho e Julho nota-se o aumento
Do quente estio, num calor insano.

No mês de Agosto há poentes cálidos
E em Setembro lindos dias pálidos,
Do triste Outono, que também seduz!...

Vem o Outubro, vem depois Novembro!
_A branca neve, que nos traz Dezembro...
O frio Inverno, que nos traz Jesus!...

Maria Joana Couto