quarta-feira, dezembro 30, 2009

ANO VELHO __ ANO NOVO

Ano Velho... O velho e o novo
Têm diversas cartilhas:
Ensinam a ler ao povo
Desgraças e maravilhas.

Quando um mente, o outro desmente
Se um desilude, o outro engana...
_E assim levam docemente
A pobre tragédia humana!

Um destrói sonhos... No entanto,
O outro ergue um sonho mais lindo...
Se um vai afogado em pranto,
Logo o outro chega, sorrindo.

Um vai de túnica preta;
A do outro é cor das brasas
Um coxeia de muleta...
E o outro voa, tem asas!

Um leva a ilusão perdida...
Outro afirma-a bela e forte!
E a gente, vivendo a vida,
Mais se aproxima da morte...

E a gente chora, suspira,
Ano Novo! __Que ansiedade!
Ano Velho! __Que mentira!
Velho e Novo! Que saudade!

Sérgio Gomes Carriço

segunda-feira, dezembro 28, 2009

COMO A ABELHA

Vivemos,
convivemos.
Conhecemos a beleza que não morre
e decorre
do saber,
do sentir
o sentido da vida
bem vivida;
e a tristeza
de não ver,
não descobrir
a beleza
a viver
nessa senda percorrida.

Colhe o fruto do dia que passa.
Vive o futuro no dia presente.
Pensa que o teu amanhã
será o que for o teu hoje.
E acredita que o futuro
escuro
é sempre mais longo que o presente,
mas também mais incerto
e ainda mais incerto
se o dia de hoje
for sombra que passa
ou pétala que solta,
aragem que sopra
ou rio que corre,
som que se esvai
ou luz que se apaga,
sem nada deixar da sua presença.

Procura ser como a abelha
que goza o perfume das flores
e descobre as suas cores;
e, como ela, procura escolher
e colher
a cera luzídia
que ilumina a noite do teu dia
e o mel
que adoça o fel
e o amargor
da tua dor.

Só assim vencerás o tempo,
sem pensar no futuro,
firme no presente,
sem ânsias de «amanhã»,
sem saudades de «outrora».

L.S.C.

quinta-feira, dezembro 24, 2009

LITANIA DE NATAL

A noite fora longa, escura, fria.
Ai noites de Natal que dáveis luz,
Que sombra dessa luz nos alumia?
Vim a mim dum mau sonho, e disse "Meu Jesus..."
Sem bem saber, sequer, porque o dizia.

E o Anjo do Senhor: "Ave, Maria!"

Na cama em que jazia,
De joelhos me pus
E as mãos erguia.
Comigo repetia: "Meu Jesus..."
Que então me recordei do santo dia.

E o Anjo do Senhor: "Ave Maria!"

Ai dias de Natal a transbordar de luz,
Onde a vossa alegria?
Todo o dia eu gemia: "Meu Jesus..."
E a tarde descaiu, lenta e sombria.

E o Anjo do Senhor: "Ave Maria!"

De novo a noite, longa, escura, fria
Sobre a terra caiu, como um capuz
Que a engolia.
Deitando-me de novo, eu disse: "Meu Jesus..."

E assim, mais uma vez, Jesus nascia.

José Régio

quinta-feira, dezembro 17, 2009

APONTAMENTO

Só agradeço
o que peço
e não
o que mereço.

A razão está nisto:
só sei ver a pureza
se a conquisto!

Vasco de Lima Couto

quarta-feira, dezembro 16, 2009

ALEGORIA

Junto do Mar canta a Cigarra.
Canta, p'ra iludir
a fome e a solidão;
p'ra fingir que tem pão
e p'ra fingir que está acompanhada.

Tremeluzem os Astros no céu nítido:
Dona Cigarra faz serão.
Como há-de ela dormir, se a vida é curta?
_: Cigarra que se preza, quando morre
não deve estar a meio da canção.

Ninguém pára a saber por que é que canta.
Ninguém lhe dá ouvidos nem conforto.
Melhor, assim: assim, não perde tempo
quem não pode cantar depois de morto.

A parte que lhe coube por destino,
tem de morrer deixando-a já cantada,
Que faz que a não escutem nem lhe acudam?
É preciso é sentir que se está vivo.
É preciso é que as asas que sosseguem
o tenham merecido.

Canta a Cigarra à sombra da montanha
e à sua voz a solidão alastra,
deixa-a mais longe, sempre, dos que dormem.
Só a noite a entende e agasalha.
Mas a voz não acusa nem se cansa
nem laiva de azedume ou amargura.

Ei-la crucificada da indiferença,
Serve-lhe a Noite de mortalha.
Morno ainda do Canto,
seu coração evola-se em ternura
que vai poisar no sonho dos que dormem...

Sebastião da Gama

terça-feira, dezembro 15, 2009

NATAL

Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.

Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
'Stou só e sonho saudade.

E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!

Fernando Pessoa

quarta-feira, dezembro 09, 2009

DIÁLOGO

Quando lembro que aos fogos da Quimera
_Disse um dia à Mente o Coração_
Teu amor imolei, fria Razão,
Logo um vago terror me invade e altera;

Porque temo não vás, fada severa,
_Para afinal punir minha traição_
Ao ver-me naufragante da Ilusão
Do teu porto negar-me a paz austera

Mas a Razão, serena, respondeu:
«Descansa, Coração; se me traíste;
Já meu alto ditame te absolveu,

Pois li sempre _ através do que tentaste _
Na mentira de quanto possuíste
A verdade de quanto desejaste.»

Manuel da Silva Gaio

terça-feira, dezembro 08, 2009

ODE AOS LIVROS QUE NÃO POSSO COMPRAR

Hoje, fiz uma lista de livros,
e não tenho dinheiro para os poder comprar.

É ridículo chorar falta de dinheiro
para comprar livros,
quando a tantos ele falta para não morrerem de fome.

Mas também é certo que eu vivo ainda pior
do que a minha vida difícil,
para comprar alguns livros
__ sem eles, também eu morreria de fome,
porque o excesso de dificuldades na vida,
a conta, afinal certa, de traições e portas que se fecham,
os lamentos que ouço, os jornais que leio,
tudo isso eu tenho de ligar a mim profundamente,
através de quanto sentiram,, ou sós, ou mal acompanhados,
alguns outros que, se lhes falasse,
destruiriam sem piedade, às vezes só com o rosto,
quanta humanidade eu vou pacientemente juntando,
para que se não perca nas curvas da vida,
onde é tão fácil perdê-la de vista, se a curva é mais rápida.

Não posso nem sei esquecer-me de que se morre de fome,
nem de que, em breve, se morrerá de outra fome maior,
do tamanho das esperanças que ofereço ao apagar-me,
ao atribuir-me um sentido, uma ausência de mim,
capaz de permitir a unidade que uma presença destrói.

Por isso, preciso de comprar alguns livros,
uns que ninguém lê, outros que eu próprio mal lerei,
para, quando se me fechar uma porta, abrir um deles,
folheá-lo pensativo, arrumá-lo como inútil,
e sair de casa, contando os tostões que me restam,
a ver se chegam para o carro eléctrico,
até outra porta.

Jorge de Sena
1919 / 1978

sábado, dezembro 05, 2009

DESTINO

Esta tristeza a resvalar desgraça...
__ Esta vida que cansa
Mas não passa... __
Esta herança
De andar pelo mundo a ser negaça...

Preso por cordéis à margem,
Preso por cordéis aos ramos,
Vou sonhando esta viagem
Que dura anos e anos
Presa na mesma miragem
Presa nos mesmos enganos...

Que outros voam! Eu finjo.
À mão travessa de altura
Que me sonhei
Não me atinjo!

Que ao menos eu pudesse
Erguer-me só à espessura
Duma tábua que eu pusesse
Entre mim e a terra 'scura
Onde o meu corpo apodrece!

Que o meu corpo
(São de erva os meus cabelos...)
Estiraçado ao comprido,
A levedar pesadelos,
Tem já bolor a cobri-lo
E rebenta em cogumelos...

Sou eu que à terra me agarro!
Os que passam alto atiram
Ou a ponta dum cigarro
Ou a mancha de um escarro
Sem que com isso me firam!

Por baixo da minha fronte
Os vermes fazem o ninho.
Sou-lhes o seu horizonte
Como a pedra de uma fonte.
Ou a pedra dum caminho...

Ninguem repara no vulto
Do meu corpo a imitar
Um cadáver insepulto
À espera que um estranho culto
O venha ali responsar...

Nada que o force a içar-se!
O braço pode erguer
Na terra a enraizar-se
Mostra no mundo o disfarce
Que a terra o esteja a prender!

Mas a terra não me chama,
Eu é que nela me afundo!
Se nela busquei a lama
Com os charcos me confundo!

Não tenho que me queixar...

Este grito
E' como uma bolha de ar
Que de mim se desprendesse
E que ficasse a boiar
Mas sem saber com que fito...

Ou talvez compreendesse
Que fosse um último olhar
De meus olhos... a tentar
Desvendar o Infinito...

Álvaro Leitão

sexta-feira, dezembro 04, 2009

ALGUÉM

Para alguém sou o lírio entre os abrolhos,
E tenho as formas ideais de Cristo;
Para alguém sou a vida e a luz dos olhos.
E se na Terra existe, é porque existo.

Esse Alguém, que prefere ao namorado
Cantar das aves minha rude voz,
Não és tu, anjo meu idolatrado!
Nem, meus amigos, é nenhum de vós!

Quando alta noite me reclino e deito,
Melancólico, triste e fatigado,
Esse Alguém abre as asas do meu leito,
E o meu sono desliza perfumado.

Chovam bençãos de Deus sobre a que chora
Por mim além dos mares! Esse Alguém
É de meus dias a esplendente aurora:
És tu, doce velhinha, ó minha Mãe!

Gonçalves Crespo