segunda-feira, novembro 26, 2012

Á BEIRA DO MONDEGO

Do azul na grande abóboda, espelhada,
campeia a lua e os astros cintilantes;
os pés nas frescas águas murmurantes,
dorme Coimbra triste e sossegada.
 
Há pouco ainda a branda serenada
nos bandolins chorava palpitantes.
Tudo é silêncio agora e dos amantes
não se movem as sombras na calçada.
 
O cais repousa, a riba é solitária,
da ponte nos esguios candeeiros
a luz vacila crepitando vária.
 
Nas curvas lanchas dormem os barqueiros.
O poeta no entanto, o eterno pária,
escuta a voz de Inês entre os salgueiros. 
 
Gonçalves Crespo

sábado, novembro 24, 2012

O ROUXINOL

Meigo cantor da espessura
Chora, suspira, enternece,
Porque essa voz que é tão pura
Fala à alma e nunca esquece.
 
Tens segredos na vozita
Que eu não sei descortinar,
Ninguém, ninguém  os imita,
Ninguém sabe assim cantar.
 
Passa o vento segredando
Os seus queixums d'amor
E diz-te baixinho e brando
_ Adeus, ó triste cantor! _
 
E tu no denso das franças
Em tristes modulações,
Escarneces as esp'ranças
Dos ingénuos corações.
 
Como um orfão desvalido
Que teve prazer jamais
Passas a vida escondido
A desferir tristes ais.
 
Rouxinol, os teus queixumes
Não são mais tristes que os meus
Eu não te tenho ciúmes,
Sou triste, graças a Deus.
 
O meu coração desfeito,
Pelos prantos, pelos ais,
Soluça dentro do peito
Como tu seus madrigais.
 
Por irmã tenho a desgraça
E por amante o luar;
Sorri a brisa que passa
Mas eu só lhe sei chorar.
 
E meus prantos mais sentidos
Feitos de mágoas e dor
São por ti bem conhecidos
Oh desditoso cantor.
 
Ambos tristes, desgraçados,
Ambos gémeos na desdita
Não temos mais que cuidados
N'esta vida tão aflita.
 
Sigamos na romaria,
Da desgraça, ó rouxinol,
Eu chorarei todo o dia,
Tu de noite, ao pôr do sol.
 
Cypriano Nunes Barata

sábado, novembro 17, 2012

DE HEINE

Tu tens na face o estio;
O inverno, no coração;
No peito _ a estação do frio
Na face _ a amena estação.

Mas não tarda que isto passe,
Mudada serás... e então,
O inverno terás na face,
Terás no peito o verão.

Ricardo Gonçalves

segunda-feira, novembro 12, 2012

CAPRICHO

Sempre voss'encia é muito caprichosa!
Põe nos braços da ama a criancinha,
E deita no regaço a cadelinha
Que se orgulha de cama tão mimosa!

Enfim, caprichos de mulher nervosa!
Mas, como eu sinto a alma atribulada
Ao ver que a criancinha é maltratada
Ao passo que a Niniche é tão ditosa.

João de Deus

domingo, novembro 04, 2012

DEPOIS DA CEIFA

Fica apenas o restolho
     lanças minúsculas aguardando o pé
     para dilacerar a carne
     penetrar o osso
     rasgando o nervo
     vertendo o sangue
     subitamente rubro
     antes de se tornar castanho
     empapando a dura crosta da terra.

           Alfredo Margarido